30/09/25

Criação

 





Esta dura crueza de navio
à deriva, seguindo a tempestade,
aguarda essa palavra que inicia
todo um começo sem saber o fim.

Dum silêncio nocturno vem a lume
a força, e um caroço se liberta
de mim, como de um fruto que apodrece
sem saber - por dentro.

Alberto Soares (poema respigado aqui)Alan Villiers (foto)

26/09/25

ENVOI

 



Há quantos anos convosco vivo
poetas deste mundo e todos os feitios,
como com tudo quanto seja criação humana,
desde as fantasias da carne à contemplação do espaço!
Se vos traduzo para vós em mim,
não é porque vos use para dizer o que não disse,
ou para que digais o que não haveis dito -
- mas para que sejais da minha língua,
aquela a que eu pertenço e me pertence,
e assim nela eu me sinta em todo o mundo e sempre,
por vossa companhia.
Pois para quem haveis escrito
senão para quem vos ame e queira.


Jorge de Sena, "Visão Perpétua", Morais Editores/INCM, 1982, p.108 

 


 

 

 

 






25/09/25

Sete Danças Gregas






Maurice Béjart (coreografia)
Mikis Theodorakis (música)
Giorgio Madia e Marc Hwang (bailarinos) Bejart Ballet Lausanne, Palacio de Congresos, em Madrid (1986)

A paixão grega


Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.

Herberto Helder, "A faca não corta o Fogo - Súmula & Inédita", Assírio & Alvim, 2008 



07/09/25

Echad Mi Yodea



Ohad Naharin (coreografia),  Batsheva - the Young Ensemble 

Ciclos

 



As casas ardem como ardem
as florestas. Por cima delas, outras casas
crescem como nascem outras
florestas. O que se renova pode ser visto como
se nada existisse antes dele: as janelas
que vemos, fechadas ou abertas, dão para
vidas, fechadas ou abertas, que são como
todas as vidas que se passaram por trás
de outras janelas, fechadas ou abertas. E
as árvores que nasceram onde outras
árvores arderam deitam as mesmas folhas
e brilham com as mesmas flores, enquanto
outros incêndios não destroem outras
casas e outras florestas. De que
nos queixamos, então? Dessa fotografia
em que o fogo apagou o único rosto
de que nos queríamos lembrar? Desse tronco
que abrigou o corpo em busca de uma sombra,
depois do amor? E quando olho estas
casas que se erguem à minha frente,
ou quando passo numa floresta repleta
de sombras e de perfumes, pergunto o que
sucedeu a esses breves instantes que
o tempo apagou, no seu curso, e se desfazem
em nada quando os procuramos, no gesto
inútil de reencontrar esse rosto de que não ficou
nem a memória, ou na tentação de procurar
a árvore que acolheu um amor que acreditou
ser eterno como as flores dessa primavera.

Nuno Júdice, "O Coro da Desordem", Publicações D. Quixote, 2019, p.24-25       

 







25/08/25

Ofício

 


Armazenar sofrimento.

Distribuí-lo depois

Límpido.

 

António Osório, "Antologia Poética", Quetzal Editores, 1994, p.69  





19/08/25

How do I love thee?



How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of being and ideal grace.
I love thee to the level of every day’s
Most quiet need, by sun and candle-light.
I love thee freely, as men strive for right.
I love thee purely, as they turn from praise.
I love thee with the passion put to use
In my old griefs, and with my childhood’s faith.
I love thee with a love I seemed to lose
With my lost saints. I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life; and, if God choose,
I shall but love thee better after death.

Elizabeth Barrett Browning


PS: em português, no Arpose, tradução de APS aqui


Criação

  Esta dura crueza de navio à deriva, seguindo a tempestade, aguarda essa palavra que inicia todo um começo sem saber o fim. Dum silêncio no...